sábado, novembro 27, 2010

Sem Contexto


Parei. Parei não, tô descansando. Parar nunca. Só na vala. Daqui da minha cama, depois da janela, um monte de fio, rabiola, tênis velho. Lá fora o mundo gira à milhão. Aqui dentro tudo tranqüilo. Fumar. Cigarro bom, de marca. Ele e a macaca do meu lado.

Quando era criança nem imaginava isso tudo. Lembro da minha mãe, domeu pai, dos meus tios. Lembro de casa. Que é bem pertinho daqui.Vontade do churrasco do tio Isaias. Das piadas do padrinho. Os horários eram diferentes lá em casa. Minha mãe trabalhava no asfalto, no comercio. Meu pai motorista de ônibus. Lembro dele de óculos escuros, sapatos brilhantes, corrente de ouro no peito, camisa aberta. Lembro da guia. A mulecada da rua tava sempre em casa. Gostavam da pipoca da minha vó, das historias do Bene, segundo marido da minha vó. Um deles correu comigo até esses dias. Foi meu amigo, meu fiel, meu chefe... agora me proteje. Nunca pensei no que ia de ser. Minha mãe diz que eu queria ser marinheiro. Falava de barco. De ficar no mar o dia inteiro. Eu não me lembro. Esse sonho eu não tive. Vivi a vida e desemboquei aqui. E só.


Foto: Silvia Izquierdo/AP – Complexo do Alemão


Sebastião Maia

quinta-feira, novembro 11, 2010

O Espaço da Alegoria

Em que pesem todas as alegorias do mundo, desde Platão, a obstinada representação da realidade foi o que nos deu régua e compasso para traçar os seus contornos e para que nos sentíssemos inclusos dentro dos seus limites, dentro dos limites do sentido, de seu significado, dentro de um mundo quem sabe inexistente; tão inexistente quanto as sereias de Ulisses e a caverna de Platão. Inexistente como o pragmatismo da poesia, como a objetividade da realidade, como uma ficção do cotidiano, que existirá dentro de nós sempre e pelos mesmos motivos de sua não existência.
Lembro-me do sonho de Aureliano Buendía em os Cem Anos de Solidão, em que ele levanta no meio da noite e via sua imagem refletida em dois espelhos nas paredes de seu quarto, um de frente para o outro, de maneira que um refletia o reflexo do outro numa perspectiva infinita, como se houvesse a imagem dele e de vários quartos projetados numa seqüência infinita um atrás do outro.
Nessa projeção de imagens dos infinitos quartos, Aureliano abria as portas e ia passando de um quarto para outro, até que em um deles Aureliano sempre se encontrava com um homem, o qual havia matado numa briga. Este era o sonho que ele tinha com a sua vitima.
Porém um dia, neste sonho, ao entrar em um desses infinitos quartos e após conversar com o homem que havia matado, ao sair, a porta não se abria e Aureliano ficou trancado, preso no mesmo quarto que sua vítima. Essa foi a maneira que Gabriel Garcia Márquez arrumou, sem dizer em nenhum momento a palavra morte, que Aureliano Buendía morreu dormindo.
Neste sentido também, lembrei-me dos cartógrafos de Borges:

“... Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa duma Província ocupava uma Cidade inteira, e o mapa do Império uma Província inteira. Com o tempo esses Mapas Desmedidos não bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o Tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos Dedicadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes decidiram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedades entregaram-no às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa habitadas por Animais e Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas.”

Ambos os textos em sua representação da realidade tentam reproduzir o imponderável e o infinito, questões patentes entre os dois autores. No segundo texto, Borges, tenta partindo de uma teoria de seus cartógrafos, reproduzir, ou melhor dizendo, representar em extensão, o fenômeno (espacial) em sua ocorrência. O que expõe a representação ao campo semântico das intempéries da natureza como prova de sua não concretixzação no real, deixando implícita a relação da representação dos fenômenos da natureza e a “natureza dos fenômenos de representação”, que tenciona criar uma outra realidade uma outra natureza em que possa existir.
A função das alegorias, ou da “natureza dos fenômenos de representação”, não é só a de ser uma imagem da coisa representada, mas também de recriar a realidade. A representação não é uma cópia mas sim uma criação do dado ordinário que pode beirar a inverossimilhança mas que existe.
Quando Borges escreveu tal texto, seria inverossímil afirmar que após a década de 70 existiriam equipamentos em órbita da terra que poderiam mapear o espaço ordinário da vida humana em sua totalidade e em tempo real, compreendendo todos os fenômenos naturais e de representação do espaço. As linguagens do sensoriamento remoto recriam constantemente realidades acerca do espaço geográfico, impedindo-nos de afirmar que haveria uma realidade em si. Mesmo que o dado e a objetividade científica, nos tentam convencer do contrário.
Outra questão ligada à representação é o da escala, que nas alegorias de Borges e Gabriel Garcia Márquez, é possível identificá-las. Toda vez em que aumentamos ou diminuímos uma escala também alteramos a percepção do espaço. Assim, por meio da escala, é possível também criar, acerca de um mesmo lugar, realidades diferentes, cujas possibilidades podem aumentar à medida que cruzamos linguagens distintas. Escalas que reduzem ou que aumentam muito, alteram e/ou suscitam outras interpretações. Mas o que importa mesmo nesses casos são as escalas que tendem ao infinito e a escala 0:1, a escala da imaginação. Esta, com dupla função: a de descrever o espaço da alegoria e a alegoria do espaço.