domingo, setembro 30, 2007

Não desligue o rádio!


Era pleno sábado de sol. A noite anterior havia sido de farra, bebedeiras, música e amigos...
Por volta das nove, ainda sonolento, me levantei “mirando a reta” em direção ao banheiro, necessitando esvaziar a bexiga lotada da cervejada passada.
Depois de atender às minhas necessidades, fechei a porta do banheiro e, me dando conta de que não havia ninguém em casa, desliguei o rádio sem reparar se estava tocando música, fazendo propaganda, em que sintonia, etc.
Ainda dormi mais um pouco, uma hora acho, e não consegui mais ficar deitado por causa do calor que já fazia. Novamente, fui ao banheiro para lavar o rosto, escovar os dentes, essas coisas...
Arrumei minha cama, e peguei alguma coisa para ler da qual não me lembro mais.
Já envolto na leitura, ouço o barulho do portão abrindo, ruídos de sacolas, e conversas.
Era a minha “mãezinha” chegando do mercado, acompanhada do meu pai.
Como era comum aos sábados minha mãe ir ao mercado, continuei ali sem dizer nada, eu e minha leitura.
Foi quando escutei minha mãe perguntar ao meu pai sobre quem havia desligado o rádio; já que quando eles saíram, deixaram o rádio ligado. Meu pai disse que não tinha sido ele, e ela, sem pestanejar afirmou: só pode ter sido o Nilson.
Continuei ali, lendo.
E pouco depois minha mãe apareceu na porta de meu quarto com uma cara de brava, e me perguntou se havia sido eu quem tinha desligado o rádio.
Eu disse que sim. “Para que rádio ligado se não tinha ninguém para ouvi-lo”, “veja a senhora, se o meu som está ligado é que estou aqui a apreciá-lo”.
Reprovando o que eu disse, ela já foi interrompendo: “Não, não faça mais isso”, disse ainda brava comigo. “Se você não reparou, tinha um copo com água perto do rádio, se você não reparou, estava sintonizado na Rádio Mensagem de Jacareí, e se ainda você não reparou era a missa do padre Marcelo Rossi que estava sendo transmitida, e ele iria benzer o copo de água que eu deixei perto do rádio, mas como você o desligou, a água não foi benzida”. Agora, só amanhã que irei benzer a minha água, por culpa sua.
Então meu filho, por favor, da próxima vez “não desligue o rádio, não desligue o rádio viu!”.

Nilson Ares

sábado, setembro 29, 2007

Mito e Logos

Continuando o que nosso Frei mor, CEO, Chair-man, Local Administrator Network começou, gostaria de reafirmar a dualidade entre essas duas matrizes epistemológicas e mostrar que ainda são muito prementes.
Não é lícito fecharmos os olhos para o entrelaçamento entre razão e poder, pois segundo mesmo Foucault, o saber e a razão são máscaras do poder.
Digo isso por que ainda hoje vivemos a polaridade entre o afã da razão cartesiana de abarcar a realidade, e a produção mitológica que empresta sentido à essa realidade, e muitas vezes dando conta de problemas do cotidiano do homem que a razão instrumental não consegue nos trazer soluções minimamente satisfatórias.
Concordo que não foi somente na Grécia pré-socrática que se lançava mão de alegorias para se explicar a realidade e se buscava na natureza através dos filósofos da “Físis” os modelos de explicação de tal realidade.A ainda hoje a produção mitológica é pungente. Muito mais do que os pós socráticos, e dos que hoje endossam o ideal Ilustrado da nossa modernidade tardia queiram ou imaginam.
Hoje o pensamento mítico está ligado no mais das vezes ao que se convencionou chamar de sociedades tribais, mas sabemos que outros grupos que não se organizam dessa maneira também buscam nessa matriz de pensamento, que se derivou desse tipo d organização, uma base epistemológica que pelo menos tente abarcar parte de sua realidade, mas acima de tudo, empreste sentido a sua condição humana, criando o significado humano e toda cultura.
Essa base epistemológica é o chamado “Conhecimento Tradicional” ou “Popular”, e o grupo, no mais das vezes, são populações ribeirinhas, tribos indígenas, comunidades locais, minorias que em geral carregam consigo um valor territorial e étnico agregado.
E a nossa ciência desde quando foi criada, juntamente com o ideal Ilustrado da modernidade articulada no modelo de razão histórica, correu logo a tachar esse tipo de conhecimento empírico de vulgar, sem valor científico, não legítimo, sem propriedade e sem um método que lhe emprestasse um status de conhecimento válido.
O fato é que esse tipo de tensão assumiu um papel de litígio de contorno internacional, desde a Rio92, através do tratado de biodiversidade é salvaguardado o direito de propriedade intelectual de qualquer droga ou principio ativo que seja descoberto ou sintetizado através de um conhecimento tradicional, tendo que remunerá-lo através de royalties pagos ao mesmo. Tratado esse que os EUA também se recusam a assinar até hoje alegando o caráter vulgar e sem legitimidade de tal conhecimento.
Agora, convenhamos, o Foucault tinha ou não tinha “razão”?

sexta-feira, setembro 28, 2007

Ler, e reler o mundo...

“A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente”.

Paulo Freire

Assim como Paulo Freire expôs em poucas palavras a importância sem igual da leitura para nós, registro aqui também, nestas poucas linhas, a aventura semiológica especificamente humana de se “ler” o mundo, entendê-lo pelas mais diversas formas que as palavras, as imagens, e outros tipos de sinais se incumbem de significar para nós, não de forma estática, mas com uma dinâmica que o próprio homem criou desde que surgiu, desde que lançou ao ar seus primeiros grunhidos diluindo o silêncio, alterando a realidade.
A leitura se confunde com a existência. Viver, talvez seja um enorme texto a ser construído do nascimento à morte, passando pelo crescimento, amadurecimento, envelhecimento e por fim: o fim, o nada, o silêncio, o “não-texto”.
A vida abandona seu estado de texto ao deixarmos de existir. Enquanto isso não acontece, vamos mediando nosso viver por este “mega suporte” que é a leitura. Lemos e escrevemos nossas sensações, nossas experiências, curtas ou extensas, prazerosas ou sofridas, faladas ou escritas, em prosa ou poesia, em música ou letra.
Como afirmou o autor, linguagem e realidade não se separam, muito menos se anulam. E a leitura é o resultado direto deste binômio complexo; a leitura é a janela pela qual, atônitos, observamos o passar da vida; lendo, e relendo o mundo.


Nilson Ares

quinta-feira, setembro 27, 2007

Choro ao invés de lágrimas

Era a flauta, 7 cordas e pandeiro.A roda chamava um choro após o outro, praticamente sem pausa. Relembravam os mestres Nazareth, Jacob e Pixinguinha...era bonito de ser ver e ouvir. Notas saltitantes, brincalhonas...fazendo um tributo à alegria daquele povo humilde. Os 3 músicos chamavam todos os presentes ali para momentos de alegria, regados a cerveja e amendoins torrados entre pedidos de músicas e piadinhas rápidas. Que ambiente era aquele! Eis que de repente, chega o Sr. Aldir, dono do boteco, com cara de pesar e diz: - Vocês não sabem...O Luizinho do cavaco morreu de velhice. O coitado tinha 96 anos... O choro parou. A tristeza que ali se fez pareceu durar uma eternidade. Uma pausa que ocuparia infinitos compassos na pauta daqueles chorões. E numa retomada de fôlego, a flauta puxou a melodia carregada de melancolia e poesia, seguida magistralmente pelo 7 cordas e o pandeiro. A tristeza não desapareceu, mas pôde ser traduzida em cada nota, na forma de despedidas e agradecimentos ao velho Luiz. E naquele dia, os que olharam para cima, disseram que notas sincopadas escoltavam a alma do ás do cavaco rumo ao céu. O povo humilde saudava seu mestre. Sem lágrimas...apenas com choro.

Mario Crema

domingo, setembro 16, 2007

Mito e logos


Podemos afirmar com precisão que a filosofia nasce à partir do momento que o homem deixa de explicar as coisas através dos deuses e busca através da razão entender o mundo.
Essa centelha da razão dada pelos gregos foi e até hoje é importante para repensarmos nossas crenças nos Mitos.
Tales de Mileto, pai da filosofia grega, colocou como elemento primordial a água como o arqué ( princípio de todas as coisas) de onde veio tudo que há. Pelas características que ela possuí e suas possívieis transformações.
Mas o que foi e é ainda tão inovador no pensamento de Tales? É que ele remove do céu a explicação e a traz para terra a origem do homem. Essa pequena chama acesa deu toda essa parafernália de idéias que conhecemos hoje na filosofia ocidental.
Até então, os gregos usavam a mitologia para explicar a realidade, o que é extremamente louvável , pois também dá sentido e acalma a existência. Afinal, como viver sem dar sentidos à realidade. Não há cultura que não tenha dado uma explicação à origem do universo que não tenha passado pelo viés mitologico.
Os mitos morrerram ? Não, eles estão mais vivos do que nunca e a própria sociedade moderna os cria. Veja por exemplo, o médico que aparece na televisão com sua roupa branca mostrando como tal remédio e eficaz para a saúde e não questionamos; ou ainda quando um professor faz uma colocação em sala que não nos possibilita o questionamento. O que estamos senão criando novamente o mito , por sinal extremamente poderoso.
A filosofia é a pulga a coçar a cabeça impedindo o estado de tranqüilidade do mundo e isso foi porque num dado momento não aceitou uma explicação mitológica e por outro lado aceitou-se ser questionada por todos.

Tito , O Frei.


sexta-feira, setembro 14, 2007

Palavras

Levaram Deus a todos os lugares da terra e fizeram-no dizer : "Não adoreis essa pedra, essa árvore, essa fonte, essa águia, essa luz, essa montanha, que todos eles são falsos deuses. Eu sou o único e verdadeiro Deus." Deus, coitado dele, estava caindo em flagrante pecado de orgulho.
Deus não precisa do homem para nada, excepto para ser Deus.
Cada homem que morre é uma morte de Deus. E quando o último homem morrer, Deus não ressucitará.
Os homens, a Deus, perdoam-lhe tudo, e quanto menos o compreendem mais lhe perdoam.
Deus é o silêncio do Universo, e o homem o grito que dá um sentido a esse silêncio.
Deus : um todo arrancado ao nada por quem é pouco mais que nada.
José Saramago - 23 de Fevereiro

domingo, setembro 09, 2007

Fio Maravilha



Quando Jorge Ben fez Fio Maravilha foi um sucesso total, entretanto, rolou uma grande confusão pois uma advogada do atleta entrou com um processo pelo uso do nome tentando ganhar uma grana para o atleta, que confessa que não sabia da história.
Bem , no final Jorge acabou alterando a letra de Fio para filho e ficou uma grande mágoa daquele que foi por tantos anos o xodó de mengão, o time de maior torcida do Brasil.
Mas o caso foi resolvido há pouco tempo, veja o terceiro vídeo esclarecedor de ambas partes que faz parte da história dessa bela união entre música e futebol e aproveite para ver o vídeo em que Alcione " aquela que todos achavam ser sapatão" cantando a música vencedora naquele ano. Tempos áureos do Mengão e da torcida rubronegra.

Nota: infelizmente não tenho como escolher somente os vídeos que desejaria colocá-los, assim desconsidere os vídeos 1 e 2 .

Hemerson Vieira.

segunda-feira, setembro 03, 2007

O Desenho

Estava cravado no muro, pela textura parecia até uma xilogravura, mas saltava aos olhos como uma imagem holográfica, tinha até uns movimentos leves e lentos, lânguidos e agonizantes.
Havia também um transe cromático, tecnicolor, um matiz que se decompunha em um arco-íris cor de sangue que por gravidade chegava até a calçada.
Alguns do mesmo lado da calçada eram meros passantes dessa holografia, assim como o vento, o frio, um resto de luz difusa daquela tarde, assim como todo gás, e todo líquido do arco-íris cor de sangue que já se derramava pelo meio fio, sujando a guia pintada de verde e amarelo escrito que já é “Penta”.
Outros se dispunham a comentar de maneira seca e concisa, pareciam críticos e especialistas inteligentes a fazer suas orações curtas num telegrafo surdo. Isso, de uma certa maneira já era esperado, haja vista que a crueza do Estado da Arte já era suficiente para dar “conta dos sentimentos em jogo”.
O Desenho nunca foi de fácil compreensão, os mais sensíveis diziam que o problema, desde o início, é que ele sempre foi mal compreendido, o fato era que ele realmente era muito confuso.
O autor não havia imprimido nenhuma sensação de certo ou errado naquela cena, apenas a impressão de ver o Desenho recostado naquela parede ser uma verdade, já que muitos preferiam não acreditar.
Desde criança lembro-me muito bem do Desenho, joguei bola com ele, e por mais que eu esperasse que isso um dia iria acontecer, não gostaria de vê-lo logo após o Penta. Foram um, dois, três, quatro, cinco tiros que o alvejaram contra aquele muro.
O Desenho começou como vapor do Zoínho, assumindo seu lugar em pouco tempo, depois puxou quatro de cana, e logo que pegou a condicional já voltou na função, e parece que agora estava devendo uma puta grana pro Piranhão.
O Desenho deixou um filho, que na sua ingenuidade de criança brinca na rua como se nada tivesse acontecido, e quando volto do trabalho e o encontro, vejo em seu rosto o esboço de uma esperança patética de que o meu filho um dia também possa jogar bola com ele. Antes de tudo.

domingo, setembro 02, 2007

Feliz ano novo


Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no reveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.
Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.
Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.
Vai mijar noutro lugar, tô sem água.
Pereba saiu e foi mijar na escada.
Onde você afanou a TV, Pereba perguntou.
Afanei, porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?
Tô morrendo de fome, disse Pereba.
De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.
Não conte comigo, disse Pereba. Lembra-se do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.
Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.
Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang, Outra bosta.
As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?
Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente.
Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.
Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.
Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba?
Michou, michou, assim não é possível, disse Pereba.
Por que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.
No banheiro tá um fedor danado, disse Pereba. Tô sem água.
As mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?, perguntou Zequinha.
Ele tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.
Ela tava nua, disse Pereba.
Já vi que vocês tão na merda, disse Zequinha.
Ele tá querendo comer restos de Iemanjá, disse Pereba.
Brincadeira, eu disse. Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A gente se respeitava.
Pra falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos em Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio gago — pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.
Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando sopa, disse Pereba. E frango de macumba eu não como.
Depois de amanhã vocês vão ver. Vão ver o que?, perguntou Zequinha.
Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.
Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.
As ferramentas dele tão todas aqui.
Aqui!?, disse Zequinha. Você tá louco.
Eu ri.
Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas magnum.
Puta que pariu, disse Zequinha.
E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta?
Esperando o dia raiar para comer farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.
Fumamos. Esvaziamos uma pitu.
Posso ver o material?, disse Zequinha.
Descemos pelas escadas, o elevador não funcionava e fomos no apartamento de Dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.
Dona Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote.
O Lambreta já chegou?, disse a preta velha.
Já, eu disse, está lá em cima.
A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse.
Subimos pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse Zequinha.
É antiga mas não falha, eu disse.
Zequinha pegou a magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá.
Botamos tudo em cima da mesa e ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.
Quando é que vocês vão usar o material?, disse Zequinha.
Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano.
Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha.
É vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, pra não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos.
É, mas dizem que ele dá o bozó, disse Zequinha.
Não sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca veio com frescuras.
Você já viu ele com mulher?, disse Zequinha.
Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa?
Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o Lambreta, disse Zequinha.
Cara importante faz o que quer, eu disse.
É verdade, disse Zequinha.
Ficamos calados, fumando.
Os ferros na mão e a gente nada, disse Zequinha.
O material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora destas?
Zequinha chupou ar fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava com fome.
Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora.
O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse Pereba.
Que casa? Você tem alguma em vista?
Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando.
Coloquei a lata de goiabada numa saca de feira, junto com a munição. Dei uma magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no cinto, o cano para baixo e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.
Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.
Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.
É um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola!
Pereba e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três garções e duas cozinheiras. Deita todo mundo, eu disse.
Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo nada.
Tem mais alguém em casa?, eu perguntei.
Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a dona da casa.
Crianças?
Estão em Cabo Frio, com os tios.
Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela.
Gonçalves?, disse Pereba.
É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.
Inocêncio, amarra os barbados.
Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou.
Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as jóias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.
Pereba desceu as escadas sozinho.
Cadê as mulheres?, eu disse.
Engrossaram e eu tive que botar respeito.
Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as jóias. A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha.Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci.
Vamos comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados, como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.
Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o que quiserem não faremos nada.
Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço.
Podem também comer e beber à vontade, ele disse.
Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.
Como é seu nome?
Maurício, ele disse.
Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?
Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.
Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.
Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.
Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado.
Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.
Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma.
Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.
Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.
Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos.
Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha. Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.
Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.
Eu não disse? Zequinha esfregou o ombro dolorido. Esse canhão é foda.
Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba.
Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto.
E você... Inocêncio?
Acho que vou papar aquela moreninha.
A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.
Vamos embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos.
Muito obrigado pela cooperação de todos, eu disse. Ninguém respondeu.
Saímos. Entramos no Opala e voltamos para casa.
Disse para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta. Eu e Zequinha saltamos.
Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas.
Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis?
Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha.
Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.
Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm.
Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.
Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo.

Rubem Fonseca

sábado, setembro 01, 2007

Gol Anuldo

Há tempos não me sentia assim. Pasmo, a mercê do outro que não eu mesmo.
Às vezes subdivido-me. São apenas vinte e cinco anos e o peso de três mundos nas costas. No decorrer desses anos o peso tem aumentado e parece deslocar, ou melhor, esfacelar minhas vértebras. O suor não é mais o mesmo. Escorre internamente, gelando a espinha e ensopando a alma.
O ânimo se foi há muito. Meus pés embotados de poeira parecem ter caminhado do sul do Chile a cabeceira da Venezuela. Tenho enfrentado muitos Atacamas.Vejo dor em minhas empreitadas sem rumo. Caminho para um futuro sem muita esperança, afinal o que se pode esperar de um sujeito em minha situação se não o mais belo e irônico fracasso? Já basta, pouparei todos de minhas mazelas e irei direto ao assunto.
Faz cerca de um mês que não sou mais o mesmo. Na verdade nunca fui eu mesmo, raras exceções de embriagues ou efeito de felicidade vazia.
Ela tem lindos olhos, além de um andar calmo e confortante. Gosto de vê-la passar. Sua serenidade me transporta para um mundo que eu já havia esquecido que existe. O mundo dos bobos, dos palhaços que riem da própria desgraça, pois tiram dela seu sustento e sua alegria. O fracasso peculiar é o combustível vital para os habitantes desse fantasioso mundo onde a miséria e os problemas cotidianos não existem
Bom, voltemos ao foco: A retina esverdeada que parece dar luz ao espectro.
Encanta-me sua voz, pouco rouca de nascença. Tem apenas dezoito anos e já me faz sentir coisas em que eu não acreditava mais.
Tivemos nosso primeiro contato no âmbito sombrio do escritório. Alberto nos apresentou:
– Beatriz, falou em alto e bom tom, mas foi como se sussurrasse em meus ouvidos.
Olhei para o chão. Não tive coragem de olhá-la nos olhos. Nem me lembro se me apresentei. Também que diferença faria? Era só mais um Jarbas que ela iria esquecer assim que o próximo Maciel ou mesmo a Ester proferisse diante de tanta beleza, as suas graças, sem tempero nenhum.
Colocaram-na em uma mesa enfrente a minha. Seria ótimo poder vê-la o tempo todo. Claro que entre nós havia mais quatro ou cinco mesas, no entanto, no horário do almoço de Rita eu podia ver por uns quarenta longos minutos os finos e úmidos fios de sua nuca ruiva.
Uma semana se passou e ela vinha cada dia mais bela. Elevava meus pensamentos ao ar, de tal forma que o locomovia aos haréns mais luxuosos da Pérsia antiga.
– Jarbas?! É Jarbas não é? – falou debruçada sobre minha mesa de mogno surrada pelos anos de mal uso de mim e de tantos outros funcionários públicos.
Seu decote modesto ressaltava as sardas do colo perturbante a assimetricamente perfeito.
– Sim sou Jarbas. Você é nova aqui? – fiz-me de desentendido.
– Soube que você mora na Lapa não é? – perguntaram aqueles lábios incandescentes.
– Sim, precisa de algo de lá – respondi firme e quase sem tremer – quase sem.
– Na verdade, meu namorado mora lá e gostaria que você me desse uma carona, caso não for incomodar. Disse.
– Claro! – respondi entusiasmado, porém sem transparecer o que sentia – me procure no final da tarde.
Agradeceu-me e foi.
Seu andar era tão... tão... que passei a gostar do sujeito – um tal de Francisco, vinte e cinco anos, engenheiro, bem de vida pra idade que tinha – tanto que torcia para que ela o fosse visitar todos os dias.
Naquela semana ela foi até lá três vezes. Seus olhos não saiam de mim. Confesso que senti um certo desconforto, mas era tão bom que logo isso se transformou em um admirável sentimento de desejo. Nada fiz nesses dias além de responder às perguntas que ela me fazia e rir de nossas coincidências clichês.
Voltei a malhar na segunda-feira seguinte. Fiquei sem comer. Fiz regime. Devia estar bem fisicamente e comigo mesmo, afinal algo poderia acontecer, e eu devia estar preparado. Foi assim que a esperança passou a figurar em meus pensamentos. Acreditava em gafanhotos verdes.
Numa quarta chuvosa, daquela que já era a terceira semana de nosso convívio, parei o carro na esquina da casa de seu namorado. Ela me pediu para fazer assim sempre. Não ficava bem para uma moça descer do carro de um rapaz para se encontrar com outro. Achava melhor evitar os comentários.
Não desceu do carro como sempre fez. Perguntou-me
– Você está com pressa?
– Um pouco, quer dizer, não sei, por quê? – respondi
– Podemos sair daqui? Gostaria de lhe contar algo que está me sufocando há dias. – disse.
Nunca a chave foi tão leve no contato. Os ruídos das borrachas gastas desapareceram e eu guiei meu Porche 911 travestido em meu Passat 75, verde abacate. Horrível.
Paramos no cais. O dia não estava propicio a admirar o pôr-do-sol e por isso o local estava deserto.
– Jarbas – começou a falar me olhando fixamente nos olhos – Não sei se devia te dizer isso assim, afinal nos conhecemos a pouquíssimo tempo, mas como acho que nosso sentimento é recíproco e por isso vou falar. Não consigo mais apenas te olhar.
Foram apenas trinta e quatro palavras compostas de cento e cinqüenta e duas letras, pontuadas com duas vírgulas e três pontos, precedidos de um beijo calmo, úmido e estonteante. Uma pausa de mil compassos.
O coração não cabia no peito. As mãos frias suavam frio. O estômago revirou causando uma sensação deliciosa, misto de medo e surpresa. Não disse nada, mas me lembro bem de seu pedido de desculpas depois que o momento mágico acabou.
Dali em diante, nos conhecemos, nos amamos em segredo e nos beijamos – e apenas nos beijamos – sem pudor.
Fizemos planos precoces. Inexperiente, larguei tudo. Minhas idéias, meus sonhos, minhas paixões não correspondidas. Meu relacionamento de cinco anos com Carmem.
Ela pediu um tempo para se ajeitar, se resolver também. Foram as duas semanas mais longas e atribuladas e mais curtas e pacíficas de minha vida. Longas pela espera de sua resposta, pelo sofrimento de minha separação, pelo conflito interno dessa paixão com meus ideais. Curtas pelos beijos no final do expediente divididos com os encontros amorosos dela com Francisco, pela vontade insaciável de vê-la e de viver.
Ontem, no fim do dia pude presenciá-la chorando pela primeira vez. No caminho para o cais, com vista para o Corcovado não conversamos por uns eternos vinte minutos. Apenas a olhei. Tinha intimidade suficiente para tocar seus seios, mas não para amparar seu pranto. Enfim veio a notícia.
A voz mais rouca ainda, trêmula, dava um tom triste e desesperador a conversa. Como em nosso primeiro beijo foi sincera, simples e direta:
– Desculpe, mas acabou! Não queria que acontecesse, mas não posso mais ficar contigo. Estou grávida. Descobri isso hoje cedo. Não sabia como te dizer. Procurei palavras o dia inteiro. Nada fiz no escritório, pensando em como te dar essa notícia. Francisco será pai e você a mais pura expressão de minha vontade e desejo contidos. – selou com um beijo o que disse. Frio e úmido de lágrimas.
Saiu do carro desvairada, aos prantos, mas seu andar, ainda que desordenado, me transportava para aquela atmosfera calma e limpa de seus beijos. Não tinha acreditado ainda. Não queria acreditar. E meus ideais? Meus compromissos? E Carmem?
Desci do carro de maneira a seguí-la, me explicar, lhe entender, sei lá, fazer algo que a impedisse de ir. Nada fiz. Apenas debrucei sobre o capô do carro.
Eu, o mar. O emadeiramento do cais, a maresia, o Cristo...
Era tarde, em nada podia pensar, além das palavras de Aldir Blanc martelando minha cabeça encorpadas na voz de João Bosco: “A alegria de quem está apaixonado, é como a falsa euforia de um gol anulado”.