sexta-feira, abril 30, 2010

O Colegiado dos Cegos


Quando ele se sentou, e abriu o livro para leitura, viu todos estatelados com seus óculos escuros, distintos senhores portando suas bengalas. Todos ávidos pela audição, o colegiado de literatos cegos já havia se postado com sua diligencia e atenção, todos não necessariamente em direção ao leitor, mas cada qual tinha seu rosto voltado para um lugar inexistentente, não para o nada, talvez pra dentro de si, de sua infância, de sua saudade, uns com a cabeça arcada para cima, outros virados para parede.
O silencio para a leitura não foi o que mais intimidou o leitor, pois sabia que sua obra não estava sendo posta a prova do som, mas da escuridão. Já que a história se tratava de uma aventura dos tempos afortunados em que os caminhos eram mapeados pelos meridianos celestes, inscritos em noites de céu estrelado, que tem o rumo traçado pelas estrelas na escuridão em alto mar. Para o colégio de cegos tudo era familiar e distante, já que seria aventuroso demais ter ao menos a luz das estrelas para se guiar dentro da história contada.
A história dava conta de um mundo vasto para a navegação, talvez seja por isso que o colegiado precisasse do universo para orientação dessa aventura, e uma geodésia imaginária para saber em que parte do globo terrestre, a personagem numa noite quente, deitado no convés de um veleiro de três mastros observando a constelação de Òrion, esperava chegar a Bornéu, sempre ao oriente da noite.
A vastidão do oriente e da noite era a mesma de dentro da casa de cada um dos colegiados, já que não paravam de olhar pra dentro de si durante toda história, o fogo que ardia em cada um era o mesmo a arder até hoje nas estrelas que guiou as histórias das descobertas e aventuras de nosso mundo visível.
E a aventura continuava por paisagens inauditas! Ilhas paradisíacas, peixes e outros seres do mar. O colegiado de cegos estava absorto na trama em que a personagem viajando, sempre buscava outros lugares, outras paisagens. Para nosso mundo visível a paisagem é sempre objetiva, a paisagem é onde nós não estamos, já que para se vê-la temos que nos distanciar, ela sempre está a frente..Já pra os cegos a paisagem é onde ele está, ele é a paisagem.
A Utopia da busca da luz, a certeza da orientação, a mudança de lugar em sua função e a excessiva objetivação da paisagem na história contada, também era uma forma de desterro e de negação do lugar, como o próprio termo utopia designa. Porém desta objetividade e desterro o colégio de cegos jamais sofrerá.
Já ao final da audição o silencio sepulcral ainda pairava na sala dos cegos literatos, quando um deles, com o apoio de sua bengala se aproximou do leitor portando um livro de cabeça para baixo pedindo caridosamente um autógrafo invisível e outra história.

terça-feira, abril 20, 2010

Ponto Geográfico

Por calendários perturbados da educação, ano passado fiquei no ócio, já no fim. Fui procurar o que fazer. A escola tinha que ir até um determinado endereço para coisas de escola das quais não entendo. O secretário iria ao tal lugar, fui junto, alias, fui com meu carro mesmo, um mil.
Tarefa de escola urbana é diferente que em escola rural. Logo umas oito da manhã, saímos. Dia bonito, paisagem perfeita, bucólico. Passamos por casa de jornalista de fofoca, médico famoso, assombrada. Estrada do Guaxindiba, saída por detrás do cemitério. Paramos no caminho para perguntar se estávamos certos (longa estrada), estávamos, seguimos.
Chegando lá, tinha uma baita descida depois de uma porteira tão falada branca. Olhei, analisei, perguntei para o secretário e fui. Fui, fui. Parei, ele fez o serviço dele e não voltei. Fiquei no meio da descida, agora subida.
O secretário não sabe dirigir, por isso fui junto, ele presisava de um motorista, mas um oficial, que soubesse pegar o barranco. Eu fiquei! Inconformada, longe de socorro, sem sinal no celular, tentei, coloquei tapete, desci e subi denovo, repetidamente, sem atropelar na ré o secretário que tentava empurrar e o carro mil teimava a voltar, e tentei, acelerei, o carro sambou, pneu patinou e eu subi.
Suando, rindo, subi, cheguei na estrada normal de terra. Veja bem, na noite anterior havia chovido pouco, mas forte. A sub estrada de terra, ficou molhada. Mas até aí, só mais um estrada de terra.
Dois dias depois, o secretário tinha que voltar na vizinha daquela casa que tínhamos ido. Um outro professor, instigado pela minha pseudo aventura, foi. Carro lotado, dois professores curiosos, o secretário e eu. Chegamos, descemos, fomos longe, mais do que da outra vez e ... subimos, travamos de leve, mas subimos.
Bom, vai ver que eu sou ruim de volante....
Morando aqui, ando conhecendo muita gente boa, inclusive de prosa: Messias, o faz tudo daqui de casa, é um. Vamos conversar que eu moro numa comunidade  com mais três humanos, seis cahorros, três gatos, nove cagados, uma criação de lesmas e caramujos (com estufa para ovos e tudo), muitas galinhas e uma pá de visitante. Para manter em ordem, Shirley e Messias. E o Messias mora para os lado da tal estrada, depois da porteira, que tem uma descida, que depois vira subida que eu fiquei.
Café da tarde no Emílio, estava lá também o Zé, outro personagem que terá um post só pra ele. Papo solto, todos contando histórias, o Messias começa contar de uma tal descida/subida. Ele mesmo, nascido e criado na tal estrada, já tinha caído, esgorregado, com moto no barranco, a moto continuou na mão dele, ruim foi o chão deixou a roda e foi para as costas.
No batizado do neto do Emílio, mês passado, uma pajero não subiu nem a paú, precisou de quatro homens feitos pra tirar o carro de lá. E narrou mais umas histórias que eu mal escutei porque ria muito. Já sabia que era minha subida, confirmei com descrições da porteira, para direita sobe muito é o cemitério, para esquerda é a estrada que ...enfim, contei da minha aventura. O Messias elogiou. Emílio nem estava prestando atenção, concentrado na ópera que estava rolado de som de fundo, e o Zé disse que devia estar seco, ruim mesmo foi quando ele passou com o chão molhado de fusca turbinado, travou de leve, mas subiu.
Assim descobri como só um simples lugar que eu fui tem tantas histórias por trás, deixou assim de ser um mero ponto geográfico e se tornou parte da história de um monte de gente. Se o ponto fosse gente, ia se sentir importante.

quarta-feira, abril 07, 2010

Sobre a Vida, e Sua Brevidade

"1. Pode haver alguma coisa mais tola, me diga, que a maneira de viver desses homens que deixam a prudência de lado? Vivem ocupados para poder viver melhor: acumulam a vida, dissipando-a. Fazem seus projetos para longo tempo, porém esse adiamento é prejudicial para a vida, já que nos tira o dia-a-dia, rouba o presente comprometendo o futuro. A expectativa é o maior impedimento para viver: leva-nos para o amanhã e faz com que se perca o presente. Daquilo que depende do destino, abres mão; do que depende de ti, deixas fugir. Para onde te voltas, para o que te dedicas? Todas as coisas que virão jazem na incerteza: vive daqui para diante.
2. Eis que o maior profeta [Virgílio], como que instigado por uma boca divina, para saudar-te canta os versos: 'O melhor da vida é o que foge primeiro aos miseráveis mortais'. 'Por que te demoras', ele pergunta, 'por que tardas?' Se não tomas a iniciativa, o dia foge e, mesmo que o tenhas ocupado, ele fugirá. Assim, é preciso combater a celeridade do tempo usando a velocidade, tal como de uma rápida corrente, que não fluirá para sempre, se deve beber depressa.
3. O poeta, que esplendidamente censura tua cogitação infinita, não fala de melhor idade, mas melhor dia. Estendes, com a tua avidez, aquilo que parece lento e seguro do tempo, mas que te foge de tal maneira em uma longa série de anos e meses? Ele te fala de um dia, deste próprio dia que foge.
4. Portanto, não há dúvida que o melhor dia é o primeiro que foge aos miseráveis mortais, isto é, aos ocupados. A velhice aflige tanto os seus espíritos infantis, que chegam a ela despreparados e desarmados. Na verdade, nada foi previsto: subitamente e sem estarem prontos chegam a ela, não percebendo que ficava mais próxima todos os dias.
5. Do mesmo modo que uma conversa, uma leitura ou qualquer reflexão maior desvia a atenção do viajante, que, de repente, se vê chegando ao seu destino sem perceber que dele se aproximava, assim é o caminho da vida, incessante e muito rápido, que, dormindo ou acordados, fazemos com um imenso passo e que, aos ocupados, não é evidente, exceto quando chegam ao fim".

Sêneca (4 a.C.? - 65 d.C.). Sobre a brevidade da vida, Porto Alegre, L&PM, 2006, pp. 46-48.

sábado, abril 03, 2010

Delícia



E a gastronomia? Já comi muita comida boa em casa, por aí. Porém nunca pensei em escrever sobre o assunto. Mas cada vez ando comendo mais coisas maravilhosas, saudáveis e cheia de histórias. E... hoje, feriado santo, almocei um prato que merece meu esforço, porém não sei se ficará a altura do prato.
Dia chuvoso aqui, comemos risoto: um de palmito, brócolis, acompanhado de hamburguer de picanha, outro de shitake e mozzarella di bufala (e muita pimenta moída) e um de bacalhau. Temperos muitos, não sei quais, mas estavão todos no jardim do restaurante, onde meus cachorros certamente marcaram território.
Para abrir o apetite, licor limoncello e água com gás.
O gosto de comer um dos meus pratos prediletos tão bem feito é indescritível. As fotos tiradas em uma ânsia de traduzir em visual o que senti pelo olfato e paladar não conseguem traduzir o prazer. Comi devagar, apreciei mesmo. Depois, com a chuva dando trégua, sentamos do lado de fora debaixo de uma cobertura hipérbole parabólica, que antes de saber tal conceito arquitetónico achei que estava apenas torto, e a sobremesa veio: torta de banana com sorvete, polvilhada com açucar e canela. Dessa nem foto tirei porque estava num momento muito mais importante.
Muito papo furado, risadas, conversas amenas, daquelas que se encaixam no momento de deixar o dia ir embora sem pressa, sem ganância, só deixar ir, até conseguir levantar, chegar em casa e tomar o café do Emílio.
O chef ficou tímido com o meu pedido de indicar o lugar e contato, então eu, longe do mar, agora tenho meu secret point. Talvez quem venha aqui visitar conheça, se o segredo permanecer. Aqui esta bom como esta. Melhor só se todo dia fosse assim. Mas durante a semana tem arroz integral, feijão, bolinhos, saladas...

Para escutar comendo com os olhos ou comendo o risoto: Beastie Boys, The Mix Up; The Clash, From Here to Eternity; Bad Religion, The Gray Race; Cat Power, Jukebox.