domingo, julho 01, 2007

História de hoje: "No escuro prometia-se o mundo".


Levantou-se preocupado, pouco depois de ter transado. Foi à cozinha, nu, abriu a geladeira e esvaziou em segundos a garrafa cheia de água mais próxima.
Precisava se livrar daquele pensamento, já que de súbito, tinha vontade de ir embora e isso o incomodava bastante, e não havia qualquer possibilidade.
A moça não merecia aquilo... Ela fazia tão caprichosamente o seu papel. Sem contar que ele não dispunha de um veículo para sair à surdina.
Mas era isso, definitivamente. Era bom enquanto durava. Infinitamente delicioso enquanto ele se entregava. Ocasião em que prometia amor eterno. No escuro tudo era permitido e possível... No escuro prometia-se o mundo.
Tentou voltar para a cama, mas o odor de vinho azedo que exalava da respiração ofegante de sua parceira o fez mudar de idéia instantaneamente. Não era o momento oportuno para se acender um cigarro (perto das três da manhã), mas era o que lhe restava: a insônia, a vontade de fumar e o maior desejo de sumir.
Deitou-se no sofá, acendeu o último cigarro do maço já meio amassado, ligou novamente o som num volume bem baixo, substituindo o Djavan das preliminares, por um Chet Baker prazerosamente melancólico e frio, deixando seus pensamentos voarem sem direção.
Não queria mais ficar sentindo isso. Sua namorada nunca percebeu. A verdade é que ela não tinha sensibilidade para tal. Seu negócio era ver o circo pegar fogo, virar para o canto e deixar o “palhaço” chorando no meio do incêndio.
Era como se sentia agora, no embalo de uma melodia cujo trompete desenhava no ar e a espalhava pelo escuro da sala, imersa num silêncio que o som do instrumento não chegava a incomodar.
Tentou recapitular tudo. Quando chegaram “chapados” em casa, ela de vinho e ele de fumo, foram tirando a roupa se beijando, se lambendo e se mordendo como dois animais e como dois animais se penetrando de várias formas, vários ângulos, os quais apenas um velho espelho testemunhava, fazendo a sua mente se lembrar com mais precisão dos reflexos do objeto, que do próprio ato em si, acontecido.
Descobriu-se apaixonado pelo “vão das pernas” dela. De onde despertava sempre um tufão, do qual estava temporariamente saturado. Mas que poderia sentir falta num futuro próximo. Era uma condição cômoda, pois tudo era permitido. Tudo o que se propunha era aceito de forma submissa; reconheceu-se também um louco por sexo. Como faria para substituí-la na cama, pois facilmente o faria em outras qualidades que esperava de uma mulher.
Ela não compartilhava com a sua música, sua filosofia, seus sonhos e enfim com a sua vida. Nem mesmo uma idéia para um fim de semana qualquer ela sugeria. Tudo partia de sua sugestão: as festas, os bares e os amigos que visitava.
Nada vinha dela, a não ser o sexo, absolutamente passivo e sem fronteiras, porém, um “dote” precioso que não encontraria facilmente em outra amante.
Sentia nisso uma lacuna enorme, pois, um dia ele pegaria suas coisas e iria embora – um peso a menos. Tentaria outra história que fosse mais a sua “cara”.
E viu que por enquanto, ficar sozinho não era bom negócio. Foi pensando nisso e tanto que, adormeceu sem notar o cigarro acabando e a brasa consumindo o filtro, no mesmo instante que o disco ia acabando, talvez na penúltima música, ainda mergulhado nos solos tresloucados do trompetista cool.
De longe, já em seus sonhos, sentiu um cheiro forte de vinho vindo, aquele mesmo cheiro “passado” de novo, só que agora muito próximo, bem molhado e quente em sua boca:

- Vem dormir na cama...
Nilson Ares, 1º de julho de 2007

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito boa meu caro, como o vinho, está ficando cada dia melhor.

Tito, o Frei

Anônimo disse...

assim como você bem descreve, há muitas maneiras de se esconder e fingir dentro de em algum relacionamento embasado somente pelo sexo.
Chet Baker lives!
Um abraço.
S. Farias