quinta-feira, novembro 11, 2010

O Espaço da Alegoria

Em que pesem todas as alegorias do mundo, desde Platão, a obstinada representação da realidade foi o que nos deu régua e compasso para traçar os seus contornos e para que nos sentíssemos inclusos dentro dos seus limites, dentro dos limites do sentido, de seu significado, dentro de um mundo quem sabe inexistente; tão inexistente quanto as sereias de Ulisses e a caverna de Platão. Inexistente como o pragmatismo da poesia, como a objetividade da realidade, como uma ficção do cotidiano, que existirá dentro de nós sempre e pelos mesmos motivos de sua não existência.
Lembro-me do sonho de Aureliano Buendía em os Cem Anos de Solidão, em que ele levanta no meio da noite e via sua imagem refletida em dois espelhos nas paredes de seu quarto, um de frente para o outro, de maneira que um refletia o reflexo do outro numa perspectiva infinita, como se houvesse a imagem dele e de vários quartos projetados numa seqüência infinita um atrás do outro.
Nessa projeção de imagens dos infinitos quartos, Aureliano abria as portas e ia passando de um quarto para outro, até que em um deles Aureliano sempre se encontrava com um homem, o qual havia matado numa briga. Este era o sonho que ele tinha com a sua vitima.
Porém um dia, neste sonho, ao entrar em um desses infinitos quartos e após conversar com o homem que havia matado, ao sair, a porta não se abria e Aureliano ficou trancado, preso no mesmo quarto que sua vítima. Essa foi a maneira que Gabriel Garcia Márquez arrumou, sem dizer em nenhum momento a palavra morte, que Aureliano Buendía morreu dormindo.
Neste sentido também, lembrei-me dos cartógrafos de Borges:

“... Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa duma Província ocupava uma Cidade inteira, e o mapa do Império uma Província inteira. Com o tempo esses Mapas Desmedidos não bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o Tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto. Menos Dedicadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes decidiram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedades entregaram-no às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa habitadas por Animais e Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas.”

Ambos os textos em sua representação da realidade tentam reproduzir o imponderável e o infinito, questões patentes entre os dois autores. No segundo texto, Borges, tenta partindo de uma teoria de seus cartógrafos, reproduzir, ou melhor dizendo, representar em extensão, o fenômeno (espacial) em sua ocorrência. O que expõe a representação ao campo semântico das intempéries da natureza como prova de sua não concretixzação no real, deixando implícita a relação da representação dos fenômenos da natureza e a “natureza dos fenômenos de representação”, que tenciona criar uma outra realidade uma outra natureza em que possa existir.
A função das alegorias, ou da “natureza dos fenômenos de representação”, não é só a de ser uma imagem da coisa representada, mas também de recriar a realidade. A representação não é uma cópia mas sim uma criação do dado ordinário que pode beirar a inverossimilhança mas que existe.
Quando Borges escreveu tal texto, seria inverossímil afirmar que após a década de 70 existiriam equipamentos em órbita da terra que poderiam mapear o espaço ordinário da vida humana em sua totalidade e em tempo real, compreendendo todos os fenômenos naturais e de representação do espaço. As linguagens do sensoriamento remoto recriam constantemente realidades acerca do espaço geográfico, impedindo-nos de afirmar que haveria uma realidade em si. Mesmo que o dado e a objetividade científica, nos tentam convencer do contrário.
Outra questão ligada à representação é o da escala, que nas alegorias de Borges e Gabriel Garcia Márquez, é possível identificá-las. Toda vez em que aumentamos ou diminuímos uma escala também alteramos a percepção do espaço. Assim, por meio da escala, é possível também criar, acerca de um mesmo lugar, realidades diferentes, cujas possibilidades podem aumentar à medida que cruzamos linguagens distintas. Escalas que reduzem ou que aumentam muito, alteram e/ou suscitam outras interpretações. Mas o que importa mesmo nesses casos são as escalas que tendem ao infinito e a escala 0:1, a escala da imaginação. Esta, com dupla função: a de descrever o espaço da alegoria e a alegoria do espaço.
















Um comentário:

Nilson Ares disse...

Fantástico!
Estamos numa era em que a alegoria do espaço dará lugar ao espaço da alegoria, ou seja, uma imaterialidade palpável, a ser sentida.
E outra coisa, vira e mexe, tenho a sensação de que vou ficar preso em meu sonho... É uma sensação horrível.

Att.