quinta-feira, março 03, 2011

Fragmentos de Um Discurso Amoroso

Parece às vezes ao sujeito amoroso estar possuído por um demônio de linguagem que o obriga a ferir a si próprio e a se expulsar -- segundo a proposição de Goethe -- do paraíso que, em outros momentos, a relação amorosa constitui para ele.

1. Uma força precisa arrasta minha linguagem em direção ao mal que posso fazer a mim mesmo: o regime motor de meu discurso é a roda livre: a linguagem vai girando, sem nenhum pensamento tático da realidade. Procuro fazer mal, expulso-me a mim mesmo de meu paraíso, empenhamdo-me em suscitar em mim as imagens (de ciúmes, de abandono, de humilhação) que podem me ferir; e aberta a ferida, mantenho-a, alimento-a com outras imagens, até que um outro ferimento venha provocar a diversão.

2. O demônio é plural ("Meu nome é Legião", Lucas, 7,30). Quando um demônio é repelido, quando finalmente impus-lhe silêncio (por acaso ou luta), um outro levanta a cabeça ao lado e se põe a falar. A vida demoníaca de um amante assemelha-se à superfície de uma solfatara*: grandes bolhas (ardentes e lamacentas) eclodem uma após a outra; quando uma baixa e apazigua-se, retorna à massa, uma outra, mais adiante, se forma, infla. As bolhas "Desespero", "Ciúme", "Exclusão", "Desejo", Incerteza de conduta", "Pavor de perder a dignidade" (o mais perverso de todos os demônios) fazem "ploc" uma após a outra, numa ordem indeterminada: a desordem mesma da Natureza.

3. Como repelir um demônio (velho problema)? Os demônios, principalmente se são de linguagem (e que mais poderiam ser?), se combatem pela linguagem. Posso pois ter a esperança de exorcizar a palavra demoníaco que me é soprada (por mim mesmo) substituindo-a (se acaso eu tiver tal talento linguageiro) por uma outra palavra, mais pacífico (caminho para a eufemia). Assim: eu acreditava ter finalmente saído da crise, quando repentinamente -- incitada por uma longa viagem de carro -- uma verborragia me possui, não paro de me agitar no pensamento, no desejo, na nostalgia, na agressão do outro; e acrescentoo que sofro uma recaída; mas o vocabulário francês é uma verdadeira farmacopeia (veneno de um lado, remédio do outro): não, não se trata de uma recaía, trata-se apenas do último sobressalto do demônio interior.

* Cratera de vulcão extinto de onde se exalam vapores de enxofre ou gás sulfídrico; sulfureira.

Roland Barthes. Fragmentos de um discurso amoroso.
(São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 111-113).

Nenhum comentário: