Noite passada, o Bebê de Rosemary me chamou para apresentar o fantasma de Chet Baker, cabisbaixo, coberto por uma bruma, sequioso por um mais trago, do infante terrível só pude ver o seu rosto refletido na campana, em sua parte côncava, que o deformava esticando-o até sumir no escuro, depois, e só mais tarde, vi que se tratava de uma sutura que unia sua face à noite, com timbre melancólico, agudo, a se misturar com o som do meu despertador cerrando aquela grade que nos prende ao real sempre às 7 da manhã.
Acordei, intrigado e com um patético bom humor, que logo fora dissipado enquanto tomava café vendo o noticiário: alagamentos, congestionamentos, nevoeiros, aeroportos operando por instrumentos... enfim, acordei com o sentimento do mundo! Lembrei-me do Drummond, “tenho duas mãos e sentimento do mundo”, pra mim, o maior poeta brasileiro soube sintetizar o viés de nossa modernidade, quando moleque, comecei lendo Drummond e só parei quando li todos seus livros ainda aos 16, me senti vaticinado pelo verso e naquele mesmo ano pensei em ser poeta, ledo engano, pelo menos com Drummond aprendi o que é a contingência, o humanismo e o existencialismo
O poema Máquina do Mundo em seu livro Claro Enigma é considerado por muitos um dos maiores poemas da língua portuguesa no Brasil. O ceticismo frente aos cânones da modernidade é a tônica do poema, a sua crítica a ciência, ao pensamento sistematizado em um método, o afã do homem para controlar o seu meio e sua realidade, tudo isso escrito na década de 50, quando ainda tínhamos os ecos do modernismo como o futurismo.
É neste afã de controle e conhecimento sobre o universo que se assenta o moderno, mas Drummond faz saber que o universo não só fisicamente mas também epistemologicamente é infinito, dentro da inifinitude epistemológica há sempre o que se conhecer, o homem jamais abarcará a totalidade e a realidade ultima.
A contingência e aleatoriedade é a base da natureza e da realidade humana, e ao ver o noticiário o esforço que fazemos para contorná-las, as ações empreendidas, o trabalho de todos seguindo o mesmo padrão, numa repetição exaustiva de poucos movimentos elementares, às vezes até, aparentemente sem sentido, realizando gestos inocentes e triviais, que nada tivessem de aterrador, contudo percebi que são imprescindíveis para levar a cabo as atrocidades.
Que a imaginação esteja no poder, que os sonhos fecundem o fictício, que se desenvolva as potencialidades do imaginário, pois é invenção que transgride os limites do factível. Assim, o possível, o virtual, o futuro não serão representados senão através do imaginário, pra além da máquina do mundo.
A Máquina do Mundo
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
Carlos Drummond de Andrade in Claro Enigma