quinta-feira, maio 19, 2011

Monstros e Monstruosidades

Noite passada, o Bebê de Rosemary me chamou para apresentar o fantasma de Chet Baker, cabisbaixo, coberto por uma bruma, sequioso por um mais trago, do infante terrível só pude ver o seu rosto refletido na campana, em sua parte côncava, que o deformava esticando-o até sumir no escuro, depois, e só mais tarde, vi que se tratava de uma sutura que unia sua face à noite, com timbre melancólico, agudo, a se misturar com o som do meu despertador cerrando aquela grade que nos prende ao real sempre às 7 da manhã.


Acordei, intrigado e com um patético bom humor, que logo fora dissipado enquanto tomava café vendo o noticiário: alagamentos, congestionamentos, nevoeiros, aeroportos operando por instrumentos... enfim, acordei com o sentimento do mundo! Lembrei-me do Drummond, “tenho duas mãos e sentimento do mundo”, pra mim, o maior poeta brasileiro soube sintetizar o viés de nossa modernidade, quando moleque, comecei lendo Drummond e só parei quando li todos seus livros ainda aos 16, me senti vaticinado pelo verso e naquele mesmo ano pensei em ser poeta, ledo engano, pelo menos com Drummond aprendi o que é a contingência, o humanismo e o existencialismo

O poema Máquina do Mundo em seu livro Claro Enigma é considerado por muitos um dos maiores poemas da língua portuguesa no Brasil. O ceticismo frente aos cânones da modernidade é a tônica do poema, a sua crítica a ciência, ao pensamento sistematizado em um método, o afã do homem para controlar o seu meio e sua realidade, tudo isso escrito na década de 50, quando ainda tínhamos os ecos do modernismo como o futurismo.

É neste afã de controle e conhecimento sobre o universo que se assenta o moderno, mas Drummond faz saber que o universo não só fisicamente mas também epistemologicamente é infinito, dentro da inifinitude epistemológica há sempre o que se conhecer, o homem jamais abarcará a totalidade e a realidade ultima.

A contingência e aleatoriedade é a base da natureza e da realidade humana, e ao ver o noticiário o esforço que fazemos para contorná-las, as ações empreendidas, o trabalho de todos seguindo o mesmo padrão, numa repetição exaustiva de poucos movimentos elementares, às vezes até, aparentemente sem sentido, realizando gestos inocentes e triviais, que nada tivessem de aterrador, contudo percebi que são imprescindíveis para levar a cabo as atrocidades.

Que a imaginação esteja no poder, que os sonhos fecundem o fictício, que se desenvolva as potencialidades do imaginário, pois é invenção que transgride os limites do factível. Assim, o possível, o virtual, o futuro não serão representados senão através do imaginário, pra além da máquina do mundo.


A Máquina do Mundo

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam

a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,

se em vão e para sempre repetimos

os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,

a se aplicarem sobre o pasto inédito

da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma

ou sopro ou eco ou simples percussão

atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,

em colóquio se estava dirigindo:

"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,

mesmo afetando dar-se ou se rendendo,

e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumiste... vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,

o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados,

e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animais

e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar,

na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,

suas verdades altas mais que todos

monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene

sentimento de morte, que floresce

no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,

afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder

a tal apelo assim maravilhoso,

pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo

de ver desvanecida a treva espessa

que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas

presto e fremente não se produzissem

a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,

e como se outro ser, não mais aquele

habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade

que, já de si volúvel, se cerrava

semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;

como se um dom tardio já não fora

apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,

desdenhando colher a coisa oferta

que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas.



Carlos Drummond de Andrade in Claro Enigma

Um comentário:

Anônimo disse...

é invenção que transgride os limites do factível.

Isto é o grande lance da arte possibilitar criar situações inexistentes onde parecia não caber mais existência.
PIK