segunda-feira, outubro 23, 2006

Relatos de um passado recente

Se perder entre
o real e o faz
de conta
é perder-se de
si m(esmo).


Praça Urinária (Praça da República)

Mais uma viagem está chegando ao fim. Percorremos aproximadamente 120km. (Sanja/Sampa)
A selva de pedra está começando pôr sua cara de fora. São seis horas da matina.

Muita ferragem, vidro, concreto, escapamento de carro, gente pra lá e pra cá.
Pronto. Chegamos na Praça urinária; gente ordinária e extraordinária passam pela mesma calçada fria e molhada. O céu cinzento desaba umas gotinhas finas.É suportável.
O cafezinho do lado direito da calçada. Aquela gente que tem medo de gente está por aqui também; e mais, gente que faz mal pra gente.
Olhos remelentos, cabelos atrapalhados, cara suja, bunda cagada; enfrenta de frente um palácio não sei do que, com mais gente de olhos tratados, pescoço engravatado, cabelos cheirosos e arrumados, rosto lavado e encremado, bumbum aprumado, e muita consciência pesada. São Paulo cheira cocô. Chegamos na Casa Santa de Misericórdia no bairro Santa Cecília.

Entra gente. Gente sai.
Chega gente.Gente vai.
Tudo chega, Tudo parte,
Sinto-me um encarte.
Passado eu ia ...Presente eu fui ...Futuro não sei.

3º andar
E a gente chegando.

Semblantes tristes, olhares pensantes e amarelados.
Rostos sofridos, marcados pelo tempo e pela dor. Humanos desumanos, desleixo e descaso.
Homens caindo da vida, ambiente sufocado. Quem não cai levanta o outro.
Criança chora, mãe acalma. A dor é tanta que seu choro não tem força.

E gente chegando.

Os bancos estão cheios com o depósito humano; (banco por definição é para se depositar algo).
Uns riem, outros consolam, outros lamentam. Arrasta corpo, arrasta...
Quanta pergunta na cabeça. Que ignorância!
O “primeiro mundo” (deptº de neurologia com relação aos outros) está calmo, apesar.

E gente chegando.

A corrida é rápida, não dá tempo pra pensar, vacilou perdeu a vez.
Jurados de vida, é assim que os vejo.
A idade não importa, todos ficam esperando depois da primeira
porta.

E gente chegando.

A mais contente saiu faz tempo, sorriso nos lábios e esperança no olhar; seu diagnóstico foi considerado bom. Cada um tem sua história e quer contar para qualquer um. Falar é uma necessidade.
Trocando informações, se consegue até melhorar a qualidade de vida.
“Uma injeção na perna que incomoda tanto pode ser substituída por uma na barriga, incomoda menos”. (Joseli).
Muleta, cadeira de rodas, carrinho de mão, conversa, conversa...
Homens e mulheres de branco correndo de um corredor para outro com “demie-vies” em suas mãos.
Não vejo sangue, só sinto.
O chão da escada está forrado do ser.
Vozes.
Laboratório gigante.
O ar está pesado, o dia está úmido e quente.
A espera ensina a gente.
Neurologia,
Eletroencefalografia,
Tudo isso, eu vi um dia.

4 comentários:

Anônimo disse...

Ah essa coisa pública.Sem comentários.Ótima narrativa que traz a luz o sofrimento que nos faz sofrer também.

Hemerson

Anônimo disse...

Bem ou mal sempre fui poupada dessa parte dolorosa, não que as outras não sejam, mas essa não dói só no da gente.
Pensar que olhamos e pensamos "aquelas outras pessoas" e lembrar depois que cada uma delas nos coloca no meio das "outras pessoas" do ponto de vista delas, são muitos mundos dividindo o espaço da doença, mundos que não se deixam encostar, cada mundo com seu ponto de vista, cada um querendo que "os outros" sumam pra fila andar mais rápido... São Paulo. Saúde.

Bem lembrado, zóim!

Anônimo disse...

Ótimo!!
Muito bom mesmo, sem palavras!
Coronel.

Anônimo disse...

Olhos Verdes,
Ainda outro dia passei pelo caos da saúde pública e me lembrei de vc.
Realmente esse texto tá na veia minha amiga!
É muito sério e seriedade faz parte dos nossos esforços não é?
Aos que leram e não entenderam eu só posso dizer: RELEIA E REFLITA, UM DIA PODE ACONTECER COM VC. SAIBA TRANSFORMAR A DOR EM PROSA, MAS NUMA BOA PROSA COMO ESSA.
Abraço
Ronaldo