sexta-feira, março 23, 2007

ALUÍZIO E O FÁRMACO – PARTE II


Aluízio se perde em significações

Para o sinistro, parentes e amigos desenvolveram maneiras de remediá-lo, arrumando um crachá e dependurando no pescoço de Aluízio com seu nome e endereço, também fizeram marcações precisas para o dia-a-dia, fixaram um cartaz dentro de sua casa com a hora do banho e das refeições, e colaram etiquetas nomeando os objetos de uso corrente na esperança de fazê-lo lembrar dos nomes e utilidade. Não havia perdido o juízo, somente a memória, então colocaram as etiquetas. Em sua estimada caneca de café colaram a etiqueta - CANECA- em sua colher de almoço e jantar, colaram a etiqueta - COLHER-, e assim foram marcando precisamente os objetos, forma e uso de cada um, tomando cuidado especialmente com esses dois: forma e uso.
E neste aspecto estavam muito bem detalhados os objetos cortantes e perfurantes. Na mesma linha colocaram de forma visível a etiqueta - AMOR - para os objetos de amor, a etiqueta - DESEJO - para os objetos de desejo, e assim sucederam as etiquetas- INEBRIANTE - CONVULSIVO - CRÔNICO - AGUDO - PASSIONAL - VAZIO - GRAVE – COLÉRICO...
Mas com o passar do tempo, Aluízio, num gesto sem motivo, tresloucado, típico de um estado de demência crônica, começa a trocar as etiquetas que nomeavam cada objeto, para com outros entre si. A da caneca colocou na colher, a da colher passou para os objetos escapístas, e destes para os passionais; inverteu os coléricos com os inebriantes, para depois trocar a etiqueta dos que fibrilam ventrículo e exortam sangue desenganado para com os objetos autodeterminantes, que a essa altura já não conseguiam mais se autodeterminarem, já que Aluízio renomeara todas as coisas, e ingressara neste momento, em uma realidade imaginária, uma realidade que foi capturada da factível por deliberada manipulação da palavra, só da palavra. E que tirou os objetos da véspera de um dia serem apenas objetos, pois a consciência de saber sê-los agora, era de Aluízio, que deu a eles outros sentidos, significados, usos e formas, reinventando uma realidade que até aquele momento, só fazia existir, porque cada objeto é uma metáfora de si mesmo quando não faz só existir. Era exatamente isso, Aluízio havia quebrado os valores absolutos, e revogado os veredictos sem apelação de todas as coisas.
Até o juízo onisciente e voluntarioso do sujeito que como ele, quando se vê a frente do espelho (que também é objeto), com a propriedade de refletir, logo pela manhã, ainda em sua toalete, antes do café, a imagem que outros sujeitos fazem dele, não se vê tal como é, e sim como um retrato falado que a opinião e o juízo alheio desenham em sua mente sobre si próprio, mas que não necessariamente corresponda a realidade. Isto é, se ela existir para ele, a esta hora da manhã, assim como existe embaçado pela fumaça do chuveiro o reflexo translúcido do espelho. Pois para Aluízio, nessas manhãs, o planeta inteiro parece ter sido criado há poucos minutos, provido de uma humanidade que recorda um passado ilusório, uma história universal fantasiosa, que nos legou a verdade, e da verdade o simulacro dos nossos dias.

Continua...

Um comentário:

Marcio disse...

isso tá legal