segunda-feira, abril 02, 2007

CONTO: ALUÍZIO E O FÁRMACO – PARTE FINAL


Eis que o boi pergunta bem baixinho, nervosa e surdamente ao seu ouvido: -A droga! Trouxeste?


Não demorou, quando este nosso obstinado companheiro de viagem, pareou os dois, o boi velho e o novo, numa pesada campanha de certificação de seu experimento. Para o boi velho aplicou devidamente a droga, de início, em sua dose mínima, já para o boi novo aplicou-lhe o fármaco sem o seu principio ativo, apenas o placebo, um comprimido inócuo, e deu início as suas observações. Reparou que o boi novo, com toda sua robustez de um Bumba meu Boi galante, mantinha-se no mesmo patamar, mas o boi velho - o boi velho! Este estava totalmente diferente. Tinha ganhado um viço, remoçado, não ficava mais só deitado, suas lantejoulas brilhavam mais, certa vez até, com seu chifre, chegou a levantar a saia de uma rapariga que passava despreocupada em frente à casa de Aluízio.
Mas, como manda a orientação metodológica, Aluízio teve que trocar a droga. Para o boi velho passou a dar-lhe o placebo, comprimidos totalmente inócuos, e para o boi novo o fármaco em si, com toda substância e propriedade da droga; daí as constatações começaram a tomar força de lei, o que eram hipóteses estavam se transformando em teorias. Aluízio monitorava seu corpo de prova, e as constatações eram cabais, a começar pela constatação de que seu corpo de prova era um boi e que reagia ao fármaco, era uma estrutura percebida de uma só vez pelas cores, suas partes, sua cara, seu rabo e seu lombo, seu porte e tamanho, seu cheiro, seu ruído, seus movimentos que decompunham a luz da tarde em suas lantejoulas, tudo em conjunto. O boi não era um feixe de qualidades isoladas, não era tão pouco um mosaico de estímulos exteriores e nem uma idéia. Era exatamente, um boi. E que não fosse surpresa, pois já era previsto metodologicamente na troca das drogas, era um boi que começava a ter terríveis crises de abstinência, febres e alucinações, que teve seu ápice quando Aluízio ao visitá-lo no meio da noite, eis que o boi pergunta bem baixinho, nervosa e surdamente ao seu ouvido:
-A droga! Trouxeste?
Neste ínterim, os acontecimentos estavam adiantados na vila de Pilão Arcado e a ciência de Aluízio estava aquém deles. A começar pelo o boi novo, que em uma dessas maravilhosas tardes ensolaradas de domingo, foi vitimado por um choque anafilático em decorrência do estado avançado da alergia à luz que fatalmente o levou ao óbito. Sem contar também, o caso de Adalgisa, linda meretriz de dezenove anos que fez sexo, não por dinheiro, com Venâncio, um setuagenário; que segundo ela, o fez por compaixão a decrepitude do velho. Fleury, um dos poucos que conseguiram auferir alguns ganhos com o garimpo, e que até o momento vivia do serviço da divida que muitos em Pilão Arcado tinham para com ele, decretou anistia a todos seus endividados, com a intenção de reverter a importância em questão para o financiamento de obras que ajudariam a construir o futuro inequívoco de Pilão Arcado. Seu vigário, também decretou o fim da cobrança do dízimo, da penitência para os pecadores, considerou a possibilidade de deus também ser mulher, abriu a porta da igreja para outras religiões falando em ecumenismo e implementou um sistema participativo e auto gestivo da administração da paróquia.
Definitivamente a síndrome dos bons pensamentos havia se abatido como uma peste na vila de Pilão Arcado, não era mais preciso a lei, a norma, o direito, não havia mais litígio, o homem era bom por natureza, todos os objetos não representavam mais tensão entre si, pelo menos até o momento de vigência da ação do fármaco. E que Aluízio não tinha intenção de ficar para ver seu fim e nem de uma vila que nunca existiu, pois me lembro muito bem do que ele disse naquele dia de vazante do fartura:
- Às vezes sou feliz, às vezes sou deus, às vezes corro triste a me refugiar em meus objetos vazios, me inebrio com alguns deles, quando faz frio, desenho o sol no vidro da janela com o sangue desenganado que o ventrículo fibrilado exortou, e se existe mistério algum no universo são os objetos que existem para mim, o mundo todo também existe de fato, mas só de fato, e não em substância, e como me vejo nele num reflexo translúcido, sinto-me como uma metáfora de mim mesmo, assim como todos os outros, mas com a diferença, de que eles não sabem que o são: Uma metáfora, uma alegoria, uma parábola da existência.
E aproveitando naquele mês a vazante, foi visto pela ultima vez trasladando para a outra margem, a mulher, o boi...

FIM

Texto: Alexandre Marques, o Coronel

Revisão / Edição: Nilson Ares

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