quinta-feira, julho 12, 2007

Excesso de Decoro Mata Pés Sujos

O Caderudo fechou. Aquele outro na esquina da 23 de maio lá na Vila Maria, após 60 gloriosos e gozosos anos, também sucumbiu ao falso excesso de decoro que a nossa urbi, causada pela especulação imobiliária, foi acometida na ultima década. E ontem numa conversa franca com o Frei Calvão, recebi a noticia que o Universo Paralelo, um boteco perto do viaduto, já há uns dias não abre mais. Este excesso de decoro josense se bateu com uma peste entre os Pés Sujos de nossa comunidade.
Foi no Universo Paralelo, que o Marião foi visto antes do recesso.
Nove da noite encostou-se no seu canto cativo, chamou uma jurubeba com uma rasinha de Amélia que matou no primeiro corte, depois um rabo de galo, pra acompanhar uma cervejinha. A cada dose parecia que Marião procurava, à princípio, a incoerência, como se Marião buscasse intencionalmente a recusa por qualquer sentido. Mas uma após outra, após a primeira garrafa, ele e seus companheiros criavam naquele portal um ambiente de símbolos avolumados de significados, que dicionário nenhum os comportaria. E que seria impossível reconverte-los e utiliza-los em uma outra história que não fosse aquela, a ressurreição da filha do Candinho da Platinela.
Que logo após a morte da filha, pasmem e acreditem se quiserem, o cabra nem teve tempo de ver a ressurreição da menina. Que foi lindo! Pois havia organizado uma pescaria com a turma do bar, mas fugira com o dinheiro.
Mas voltando ao caso da ressurreição, contam, que a menina surgiu em manto branco e azul celeste, igual o da Virgem Maria, com uma luz leve e difusa numa nuvem clara de fumaça que cheirava a jasmim, e foi subindo ao céu para junto de deus Pai, deixando só a sua fragrância naquela noite.
O pessoal conta que a filha voltou só para encontrar o safado do pai, que era um panderista de primeira, mas caloteiro que só ele. Existe até hoje, uma reclamação por escrita na lousa do bilhar do bar a respeito do calote do Candinho da Platinela.
Mas Marião sabia que não era bem isso. O motivo da volta era os encontros que tinham as quintas-feiras a noite no sopé do morro do beco da Paz, a menina aparecia num véu que refratava a luz das estrelas, numa beleza translúcida, transparente. Tinha os lábios lívidos e a pele branca e gélida como a lua, linda...linda! O que fazia Marião passar o reto da semana impaciente na espera do próximo encontro.
Apaixonado, Marião estava perdidamente apixonado!
Absorto que estava, Marião foi ter uma parte com o padre da paróquia. Este por sua vez, disse à Marião, que paroquiano dele que se presta, não se daria a tipos de encosto, bruxaria e coisa feita. Porque, crendice popular não deve fazer parte da vida de um cristão. Chegando a perguntar literalmente à ele se ainda era cristão. Marião respondeu que até certo tempo atrás não o era, mas que depois, começou por livre espontânea vontade a ser; porque se assim não fosse não saberia pecar.
O fato de ter se tornado cristão só pra poder pecar, era a sua teologia, gostava de dizer que a fé absoluta e a incredulidade total nos levam para fora do fantástico, a hesitação entre eles é que dá vida! O fantástico ocorre na incerteza do que é ou parece ser. E Marião experimentado que era nas leis naturais do mundo deparava-se com acontecimentos que não trazem a certeza de serem parte ou não de seu mundo familiar. Isso por que ele só conhecia as leis de uma realidade mandatória, ordinária que vez ou outra tinha uma acareação com o sobrenatural.
E essa hesitação de realidades experimentada por Marião, e que seus companheiros ainda não a tinham, entre o natural e sobrenatural, que é o que dá a vida segundo ele próprio, era o que também fazia Marião ir em frente com seu amor pela filha defunta do amigo Candinho. Aquela que ressuscitou para amá-lo, naturalmente, de corpo e alma.
Desde que o Universo Paralelo entrou em recesso Marião nunca mais foi visto.

PS. Este texto foi escrito de traz para frente.

3 comentários:

S. Farias disse...

bravo!!! realismo piraquarense!!!
Grande coronel!
S. Farias

Nilson Ares disse...

Todorov iria gostar disso!

Marcio disse...

Fantástico.