quarta-feira, outubro 01, 2008

Romildo Cézar de Jesus, o Dromedário


Há dois anos conheci Romildo Cézar de Jesus. Esse era o nome verdadeiro do Dromedário, apelido carinhoso conferido a ele graças a saliência lombar adquirida por locomover-se de forma arcada pelos pátios da escola. Também pudera, com dois metros e cinco centímetros de altura, sustentando nada mais, nada menos, que cento e sessenta e cinco quilos, que outro apelido lhe caberia tão bem?
Mas a estória não é sobre o pseudônimo Dromedário, mas sim sobre sua peregrinação, do pátio pra sala, da sala pro corredor, do corredor pro portão da quadra e assim por diante. Acho que se colocar em linha reta o tanto que esse cara já andou dava pra atravessar o Saara, ida e volta.
E como já se deve imaginar, a lei da compensação – vide conversas socráticas com Maria, simplesmente – foi um tanto quanto legítima com o Romildo. Já que tinha tanta massa bruta, a cinza não era tão desenvolvida, acho que as sinapses não eram lá muito católicas, aliás, o Dromedário era filho de Oxum, mas isso não é determinante para essa estória. Recordo-me inclusive que uma vez lhe perguntaram por que é que o nome era corredor se ele sempre mandava que ninguém corresse ali. Simplesmente não respondeu a tal questão...
Noutro dia, mesmo sem arquitetar isso seguindo normas e parâmetros internacionais de fomento, a criançada da escola inventou um jogo de pontos com o intuito único de desenvolver sua popularidade. O jogo consistia hein conseguir irritar o Dromedário até ele partir pra ignorância, o que não era raro. Aliás, quando se irritava muito o Romildo se transformava numa criatura mais grotesca ainda, digo até monstruosa, com olhos esbugalhados e um pouco de baba espumante nos cantos do beiço, afinal aquilo não eram lábios ou cavidade bucal. O cara era só beiço. Vale lembrar que esse jogo era apenas pros mais velhos e corajosos da escola e apesar de ser uma tremenda idiotice, acabava, não se sabe como, atraindo as pequenas virgenzinhas das cercanias estudantis.
Acontece que numa manhã não muito cinza o Uésly, (acho que é Wesley, mas serei fiel a forma como ele era chamado) resolveu tentar a sorte, já que era um pouco esperto, nada estereótipadamente bonito e na verdade bem medroso, num insight de bravura incitada por pitadas de feromônios buscou na exibição uma forma atrair algumas garotas a sua volta.
Indagou ao Dromedário se ele sabia jogar iô-iô. Claro que não sabia, exigia muita coordenação motora. Então o moleque resolveu fazer uma demonstração. Várias manobras depois, como o cordão já todo enrolado, devido as elipses consecutivamente executadas, o garoto resolveu tirar uma manobra da manga. Pediu pro Dromedário ficar parado onde estava, sem se mexer, e começou a agitar o iô-iô pra executar a tão famosa “volta ao mundo” (pra quem não é amante dos iô-iôs essa manobra consiste em ao fazer o instrumento percorrer toda a extensão de seu cordão, lançá-lo num movimento anti-gravitacional para frente, a fim de que o mesmo percorra no ar uma volta completa antes de se enrolar novamente no cordão). Mal sabia o Uésly, tampouco o Dromedário que o capeta do Gabriel ia passar correndo naquele lugar, naquela hora, daquela manhã agora um pouco mais cinza, onde justamente nessa cena o imbecil do Antônio resolveu sutilmente interceptar o trajeto do capetinha, colocando de leve a ponta do pé a frente do encapetado que ao se desequilibrar buscou apoio nas costas do Dromedário, que apesar de todo peso não suportou o solavanco e deu um passo a frente, sendo acertado no beiço pelo iô-iô e sua força centrípeta. A multidão do intervalo ficou perplexa com tanto sangue jorrando da beiçola do Dromedário. É o tempo cinza fechou de vez.
Ainda sangrando Romildo apanhou o iô-iô do moleque com a mão esquerda e despedaçou-o com um movimento brusco. Aí sim, com as mãos ainda sujas de sangue e iô-iô, porém de alma lavada o Dromedário levou o Uésly pela aba da mochila pra ver a dona Gertrudes, pedagoga com a mesma qualidade de sinapses cerebrais do Dromedário, porém sem nenhuma força física, ou melhor, com acúmulo de tecido adiposo. Seus dotes mais notáveis eram a incrível potência das cordas vocais, máscara craniana e o pertencimento a uma classe social de pseudo semi-burgueses, adquirida ao se casar com Astolfo, metalúrgico bem sucedido, e patrocinador da faculdade de pedagogia a distância, dessas que se tem por aí aos montes, como as clínicas odontológicas populares, mas que sobretudo a legitima o direito de ocupar aquele cargo educacional.
Até hoje Uésly é aclamado por todos como o “Davi da escola”, que numa iô-iôzada sangrou um Dromedário e ganhou 1000 pontos no jogo da popularidade.

12 comentários:

Maria Angélica Davi Costa disse...

Chega de io-io!!!

Alê Marques disse...

essa febre de io-io vai acabar matando alguém! A começar pelo beiço! Mas a força não é centrípeta e sim tangencial!

el Samu disse...

Grande Alexandre. Viva as aulinhas d Senai na década de 80. Valeu.

Marcio disse...

não consegui parar de ler até terminar, que simpático esse dromedário!

Nilson Ares disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nilson Ares disse...

Puxa vida... Como me lembrou Frankstein este texto.
Fragmentado como o monstro de Shelley...

Valeu!

el Samu disse...

Quem dera ser tão romancista assim. Valeu Sarsa.

Maria Angélica Davi Costa disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria Angélica Davi Costa disse...

Praticamente um Veríssimo!!!
"Seus dotes mais notáveis eram a incrível potência das cordas vocais, máscara craniana e o pertencimento a uma classe social de pseudo semi-burgueses, adquirida ao se casar com Astolfo, metalúrgico bem sucedido, e patrocinador da faculdade de pedagogia a distância, dessas que se tem por aí aos montes, como as clínicas odontológicas populares, mas que sobretudo a legitima o direito de ocupar aquele cargo educacional."

Essa descrição foi sensacional!!!

Todas as vezes que eu leio, meu dia fica mais feliz!!! Sonho com o dia que todos os io-ios vão ser esmagados!!! :)

el Samu disse...

Deixa o Veríssimo ficar sabendo disso. Vai virar comédia da vida privada.

Mas em todo caso:
A favor de um Estado Dromedariano!!! Abaixo aos iô-iôs nas escolas!!!
Boa idéia.

Valeu Maria

Anônimo disse...

não tenho nada contra os iô-iôs...porém a figura dromedariana me lembrou o mainardi quando jogávamos(sic) bola no Sueli...
valeu Chará, grande texto!
sf

el Samu disse...

Sabe que depois do texto lido também tive essa impressão. Valeu Farias.