quinta-feira, outubro 15, 2009

Aerostação

Montaram-no no meio da sala, o velame era colorido com desenhos tirados da televisão. Tinha um Perna Longa estampado bem em cima e a armação era de uma barraca antiga de acampamento, as crianças estavam tão convictas da sorte do engenho que se mostravam realmente dispostas a não ver defeito algum. Não media mais que dois metros quadrados, mas os meninos tinham certeza que poderiam alçar vôo passar pela janela, o portão e ganhar as ruas.
Amarraram com um barbante as pontas do velame na caixa de brinquedos, como se fosse um pequeno cesto e quando já a bordo dele se sentiram os gênios da aerostação, só faltava a chama que os fariam mais leves que o ar. Apagaram as luzes de toda casa, tatearam como dois ceguinhos pelos móveis, até que um deles pegou a lanterna do pai e a acendeu dentro do balão. No mesmo instante o velame inflou. Seguraram firme no cesto que começou a balançar, e que por sorte, e prudência dos meninos, estava ancorado no sofá.
Um deles tratou logo de soltar a amarração que prendia o balão para que pudessem alçar vôo, mesmo sabendo dos perigos de um vôo noturno, o que estava dentro cesto com a lanterna acesa alimentando o velame de luz, chegou até a pensar em deixar um bilhete aos pais dizendo que fariam apenas um vôo experimental e que em breve voltariam. Mas a ansiedade, a felicidade, o nervosismo, a alegria de estarem decolando com um balão da sala de casa, era tanta que não conseguiram atinar mais em nada.
O balão foi levantando lentamente do chão da sala, foi ganhando uma certa altitude até chegar ao teto, que coincidentemente passou a ser seu teto de vôo, sobrevoaram toda a sala, foram para cozinha, passaram pelo quarto dos pais e os puderam ouvir lá em baixo roncando, chegaram a lavanderia e a janela entre aberta deixou entrar um pouco de luz do poste da rua.
Essa pouca luz vinda de fora foi o suficiente para o balão perder o prumo. Começou a rodopiar e as crianças se seguravam a cada reflexo de luz, mas era em vão. O que segurava a lanterna a aproximou ainda mais no velame na intenção de uma fuga daquela tormenta, de repente se formou uma nuvem de luz parada no ar que se aproximava do balão, como se fosse uma culumbus nimbus luminosa.
Os fótons dessa nuvem atacavam violentamente o velame, era um jorro feroz de cores que os desenhos animados feitos no tecido filtravam, deixando passar ora o verde, o vermelho, o amarelo ou quando não, o branco, na impossibilidade de conter a cheia de todas as cores. A cabeça das crianças já estava em maresia, as luzes e sua refração nos desenhos animados provocavam uma náusea doce.
Pensaram em chamar pelos pais, mas os golpes que as luzes davam no balão e a náuse doce dos desenhos impossibilitaram de proferir qualquer palavra. Foi uma noite em que ficaram a deriva do lume do balão, com lufadas de fótons que os empurravam contra a parede da sala e os arrastavam até ao banheiro, ida e volta. No dia seguinte quando os pais levantaram, a tenda do Perna Longa jazia surrada debaixo da mesa da cozinha e logo mais a frente, as crianças, com seus corpos exaustos e lanhados pela luz, dormiam no sofá.
Para Gabriel

4 comentários:

Marcio disse...

que singela e emocionante aventura! A passarola da terra do avião!

Luciana Bertarelli disse...

O livro de contos vai sair quando?

Nilson Ares disse...

Uma volta ao mundo em oitenta segundos de infância!
Bravo...

Anônimo disse...

hibridismo: Manoel de Barros,com Julio Verne e uma pitada
de fantasia latina do Gabo.

divino maravilhoso!


abraços

Prata