segunda-feira, março 26, 2007

CONTO: ALUÍZIO E O FÁRMACO – PARTE III


“O clown é a poesia em ação” (Henry Miller)

Esta situação começou a ter seu alento quando apareceu em Pilão Arcado um sujeito magro, alto, trajando uma indumentária toda escura: sapatos, calça, paletó, só a camisa amarela.Tinha a face lívida, branca como talco, os lábios vermelhos de batom, e sobrancelhas, negras, desenhadas a lápis; mas uma característica peculiar deste sujeito era que ele não falava e nem emitia som nenhum, não parecia um problema congênito, uma mudez de infância, comunicava-se apenas através de gestos, todos largos, expansivos, e generosos, seu semblante assumia formas também muito intensas e exageradas, que ia desde a alegria com um sorriso largo e igualmente sem som nenhum, até uma tristeza que parecia uma máscara de teatro congelada em sua face.
Bom, este sujeito era... Este sujeito era um deputado, se não me falha a memória, ou exercia algum outro cargo no legislativo. E foi logo tratando de colar os cartazes por toda vila de Pilão Arcado, chamando a todos para o grande comício de mais à noite que se realizaria na praça matriz. Que antes mesmo do anoitecer já começava haver uma aglomeração no local, e as pessoas não paravam de chegar, todos ansioso para o tal comício.
Na hora marcada, todos reunidos, o distinto deputado começa explanando, claro que obviamente só com gestos, a respeito de sua moral ilibada, da sua retidão de princípios, de quando era coroinha e ajudava o padre em sua paróquia, dos tempos em que passou no seminário, mas que, Deus quis que deixasse a vocação do sacerdócio para tornar-se um representante do povo, aquele que busca o bem comum e enxerga na república a organização máxima da vontade de uma maioria, sedimentada na constituição de um Estado de direito democrático. Tudo isso, só pela mímica!
A população de Pilão Arcado estava pasma e vidrada na eloqüência daqueles gestos. O distinto deputado sabia mesmo como atrair as massas e, não só pela eloqüência de seus gestos, e de toda a retórica de seu corpo, mas também por que tinha uma plataforma de campanha realmente consistente e objetiva.
O poder de convencimento de suas idéias tomou todos de súbito, quando tirou de dentro de seu pequeno caminhão réplicas de árvores feitas de celofane, bancos de praça e automóveis feitos de caixa de papelão e começou a deixar claro o seu ambicioso projeto urbanístico para a vila de Pilão Arcado.
Criou praças, ruas, asfaltou estradas, avenidas, construiu pontes sobre o rio Fartura, fábricas, fumaças saindo de suas chaminés, semáforos, com crianças vendendo "drops" enquanto descansavam seus surrados e exaustos malabares entre um sinal vermelho e outro; construiu chafarizes imponentes, bairros de alta classe, condomínios com total segurança, zelados por pessoas que não morariam neles, arquitetou um grande centro de convenções, conveniências, compras, consumo, entretenimento, onde poderíamos mandar flores por telefone para amada e receber comida pronta em casa. Enfim, mostrou a inexorável trajetória para o futuro que havia desenhado dentro de sua plataforma eleitoral, e acrescentou que o destino de Pilão Arcado, a partir daquele dia, estava fadado à prosperidade completa e inequívoca.
O deputado também não deixou de fora de sua plataforma, a preocupação que sempre teve com a cultura, e para provar suas verdadeiras intenções para com as artes e entretenimento, foi que de repente, abriu a porta traseira de seu pequeno caminhão e, de lá saíram trinta talentosíssimos bailarinos surdos e mudos, que executaram uma belíssima coreografia acompanhada de uma música imaginária, tocada por dois músicos, um num acordeom sem teclas, e outro, numa rabeca sem cordas. Foi lindo! Toda população estava extasiada com tanta informação e arte.
Mas o ponto alto deste silencioso comício, foi quando o deputado através de sua eloqüência gestual, tornou clara a intenção de se construir ali, um cinema, uma sala de exibição onde ocorreriam a avant-premier de toda cercania, e para mostrar as condições objetivas para tal empreendimento, projetou em uma parede da praça uma película em preto e branco, e igualmente sem som nenhum, de um homem franzino e de bigodes dentro de uma fábrica apertando parafusos freneticamente, e disse ser o prenúncio dos "Tempos Modernos".
As crianças estavam bestificadas, as mulheres e os homens ora riam, ora choravam copiosamente com a película, Pilão Arcado estava dando um salto para o progresso, e seus habitantes se enchiam de um patético otimismo e amor próprio, e de uma fé abjeta e devassa num futuro promissor, um futuro que segundo suas contas estava bem próximo, por volta do ano de dois mil de nossa fé cristã.
E Aluízio, como não haveria de ser, também estava embevecido com tanta realidade e futuro, e foi ter uma palavra com o tal deputado. Após um longo beija-mão que se estendeu por uma fila quilométrica, Aluízio finalmente chega até a presença do ilustríssimo parlamentar, e contou sobre seu problema de saúde; disse ainda sentir dores e que as pessoas falavam que ele andava desmemoriado.

Continua...

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