quarta-feira, agosto 29, 2007

Histórias do Uruguai

"(...) Para mim teria sido difícil encontrar o túmulo sozinho; estava debaixo de uma árvore cuja copa era de um verde claro. A terra preta, recém removida, estava rodeada de estacas brancas de um curralzinho que parecia um berço. A cruz estava meio inclinada para frente, como se olhasse para baixo. O soldado estava a alguns metros de mim e não tinha apeado da mula. Comecei a me sentir mal; olhava para o chão, mas, como supunha que o soldado olhava para mim, não sabia o que fazer. Não me ocorria nenhum rito em homenagem à menina; de bom grado teria perfumado a terra, regando-a com o vinho. Mas não sabia o que o soldado pensaria. Também não tinha vontade de comer; mas devia tirar o pacote dali, pois os cães poderiam revolvê-lo profanando o túmulo. O melhor seria voltar outro dia e trazer o gatinho e a plantinha.
Em boa parte do caminho de volta, o soldado foi comendo o conteúdo do pacote e tomando o vinho. A princípio, quando ele havia começado a comer, veio-me um grande apetite; mas não me parecia bem pedir-lhe um pouco do que eu lhe dera. Depois me entreguei a meus pensamentos e consegui me lembrar de muitas coisas da menina; mas de repente acordei; foi quando o soldado espatifou a garrafa contra as pedras. Depois, com a boca ainda cheia, ele me disse:
-Nunca consegui saber se ela era minha filha ou minha sobrinha.
Fiquei cravado no caminho; e enquanto engolia o que acabara de ouvir, via a mula caminhar no meio das pedras e lembrava de uma mulher saindo de um cabaré que eu havia visto no meu século. Corri até o soldado e perguntei:
-E seu irmão, o que diz?
Ele olhou para mim enquanto seu nariz em gancho bicava ao compasso dos passos da mula e me respondeu:
-A mesma coisa.
(...)"

trecho do conto Lucrécia, em O Cavalo Perdido e outras histórias, de Felisberto Hernández.

Gostei muito dos contos desse escritor uruguaio. No princípio, tive a falsa impressão de se tratar do fantástico, daquela reordenação das leis naturais que torna possível o extrordinário. Mas a estranheza da narração, seu ritmo incomum, suas imagens perturbadoras me desinstalaram da poltrona confortável e me perguntei, como assim?
Julio Cortázar (prólogo, ed. Cosaicnaify, 2006) sobre Hernández: "Deve-se pedir mais a um narrador capaz de aliar o cotidiano ao excepcional a ponto de mostrar que eles podem ser a mesma coisa?"
Mas nem precisa pedir emprestado porque não é meu e não tenho esse vício de emprestar a terceiros o que não é meu e não fui autorizado a.

5 comentários:

Anônimo disse...

Não é uma questão de vicio.
É essa minha alma solidária, generosa,minha veia cristã, meu dever de vicentino que me faz lembrar daqueles que não tiveram a mesma oportunidade de fruição que eu tive ao ler determinadas obras.
De maneira que me comovo, cedo gentilmente a obra para sua fruição e peço a virgem maria e a todos anjos e santos que intercedam por eles( pelos livros).
Coronel

Anônimo disse...

Caro "Gurdura",

Li o trecho do livro em questão, e suas analogias com o realismo fantástico, e o que ficou foi uma vontade de "violar" o cotidiano rumo a um lugar onde tudo posso, tudo quero e nada devo...
Um lugar repleto de ficção, rodeado de mentiras ululantes para que eu pudesse me deleitar com elas sem culpa.

Nilson Ares

Anônimo disse...

nossa,vendo o tamanho da lista de colaboradores,comparo o comuna ao corinthians.vai mandando gente la pra ver se levanta....

Anônimo disse...

Nosso amigo anônimo acima todas sabem que é Frei Calvão Perobo, torcedor do time que tem mais viado por metros, o problema, nenhum, aliás, um , eles não assumem. Por isso ele vem com esse anônimo.
Sai dando Calvão, e vai fazer elogio ao Cênico, ao Cômico.

Marcio disse...

è, Coronel, sua passagem como coroinha do Monsenhor não foi no vão, quer dizer, em vão.