Ser transparente
Não significa
Ser transponível
Ou permitir invasões.
É enxergar do outro lado e não poder tocar.
Contente-se!
Charles Lima
Ser transparente
Não significa
Ser transponível
Ou permitir invasões.
É enxergar do outro lado e não poder tocar.
Contente-se!
Charles Lima
E a cobra falou: e a Adalgisa? Que deixou o irmão da minha tratadora bêbado lá no boteco do Arlindo, aquele mesmo que virou drogaria, que curava gripe e azia e cobra coral para paralisia. Coitado do irmão dela, já tinha largado a neurastenia, junto com aquela sua mania que o perseguia, que sempre correu atrás daquela outra, essa sim, moça formosa e esguia mas que também não o queria. Acabou mesmo foi com o dono da outra drogaria, vi a foto do casamento deles que tinha o pano de fundo a paisagem da farmacologia. Veneno? Que nada, era só homeopatia! Doses certas e cavalares e tudo mais no que nela ia, lá dentro da garrafa em que jaz a minha tia, urutu cruzeiro de presença! Acabou que levou a falência a concordatária drogaria, não contaram com a panacéia da titia, tiro e queda para bicho de pé, endometriose, tristeza e taquicardia. Só sei que o da farmácia, acabou junto com o Mané Fogueteiro na mesma guia, foi explorado pela mulher e corneado noite e dia, e acabou numa vala comum só reclamando, o coitado, da injusta periculosidade e da mais-valia. Pois pensava que aquela da garrafa já não picava e nem mordia.
Hoje me lembrei de um poema do Drummond, “A Suposta Existência”. Há muito já havia lido esse poema, acho que eu deveria ter uns dezesseis e me intrigou demais. Foi mais ou menos por essa época que minhas consternações ontológicas tomaram uma agudeza que carrego até hoje!
Desde muito antes dos meus dezesseis, ainda bem criança, aguçava em mim umas elucubrações metafísicas que só começaram a fazer algo sentido quando li esse poema do Drummond. Não sei se com vocês era assim, mas eu sempre ficava pensando como ficavam as coisas no interior do quarto depois que se fechava as portas e apagasse a luz. Como elas se comportavam sozinhas ali sem ninguém ter por elas, ou lhe emprestar algum sentido de existência. A duvida era: será que quando não estamos olhando ou em sua presença, as coisas existem mesmo? Uma chave esquecida há anos numa gaveta, a mobília da casa quando estamos fora, o defunto horas depois do enterro, ou nós mesmos, como diria Drummond, num quarto vazio sem espelhos, existiríamos nele? Existem coisas sem ser vistas? Ou elas assumem uma outra forma a qual não temos acesso ?
Esse tipo de indagação me surpreendia na escola, no meio da aula da 1ª série, será que meus irmãos, meus pais e colegas da rua estão todos lá, em suas atividades de praxe, enquanto estou aqui estudando? Ou eles e transformam em alguma outra coisa, ou será mesmo que nem existem? Eu até tinha vontade de falar sobre isso com alguém, mas na época, eu tinha medo que caçoassem de mim, motivo de pilhéria, chacota ou sei lá! Mas o fato é que as coisas sempre arrumavam um jeito de me enganar; a tesoura, o balde, a mesa, todos eles estavam sempre a me pregar peças, e eu precisava estar atento a sua substância e os possíveis acidentes.
Obviamente que naquela época eu não tinha noção dos estudos da metafísica, é claro! Mas depois do Drummond vi que era tudo isso mesmo, as coisas podiam enganar a todos, mas à mim não, eu sei que era tudo cenário. Haja vista que hoje sou uma “ficção rebelada”!